Tarja Preta
Jamile Guerra
A capa do Correio Braziliense
estampa na manchete o aumento significativo da venda de psicotrópicos na
capital federal. Leio aquilo e me sinto feliz. Pelo menos nisso, não estou
sozinha. Lembro-me do Programa Tarja Preta, apresentado pelo Selton Mello. Ele
entrevistava figuras do meio artístico e, no fim, sempre disparava a mesma pergunta:
toma algum tarja preta? Guardei na memória a resposta do Marco Nanini: claro,
são os melhores.
Não sei se são exatamente os
melhores, adoro outras categorias de remédio, então escolher um preferido é
pedir para uma mãe dizer de que filho mais gosta. Meus “controlados” tornam os dias
melhores, mas também não deixam de ser um incômodo, sobretudo não hora de
compra-los. Sou neurótica, paranoica e ansiosa. Desconfio que nada existe
naqueles comprimidinhos receitados pelo médico, tudo placebo. Ir à farmácia,
apresentar uma receita azul e, claro, achar que todos olham para você e pensam
que é louca, isso sim é o que realmente importa para efeitos de terapia.
E lá vou eu em mais uma saga na
busca de meus inseparáveis companheiros. Suo frio. Entro na farmácia e faço uma
espécie de reconhecimento de território. O lugar está vazio, apenas um senhor
já bem idoso passeia por entre as prateleiras. Esbarro com ele a caminho do
balcão e tenho certeza de que sabe de tudo. Sigo em frente e procuro por um
farmacêutico que pareça discreto. Não sei como definir uma cara de discrição,
vou no “feeling”. Escolho um jovem rapaz que atende no canto direito do balcão,
tiro a receita da bolsa cuidadosamente e apontando para o nome do remédio digo:
- É esse aqui!
Ele vai para o estoque e parece
ficar por lá uma eternidade. Outras pessoas chegam à farmácia e eu pouso os
braços sobre a receita na esperança de que ninguém a perceba. Sinto que estou
sendo observada. Olho para os lados e noto que o senhor me espiona de canto de
olho. Deve estar pensando “Ah, essa juventude está mesmo perdida”. Sinto uma
enorme vontade de dizer que ele não tem nada a ver com a minha vida, que estou
me cuidando, que foi o médico que me receitou aquele maldito remédio e aff.
Conto até dez, respiro fundo. Autocontrole também faz parte da terapia.
Agora o local reúne uns cinco ou
seis clientes. O farmacêutico volta de mãos vazias e grita para o seu colega do
outro lado da farmácia: Lexotan 06 mg, não estou encontrando. Tento disfarçar
meu desespero, me afasto do balcão e faço de conta que aquele remédio não me
pertence. Invento qualquer coisa para me distrair e, de repente, me pego lendo
a embalagem de uma fralda geriátrica. Ok, não estou ajudando muito.
O farmacêutico
desgraçado-sem-vergonha- indiscreto-de-uma-figa volta com a porra da caixa de
remédios na mão. Aproximo-me com um olhar fuzilante. Peça um analgésico, um
antibiótico ou que o valha e você os terá tranquilamente sem nenhum problema.
Agora experimente pedi um tarja preta ou uma pomada para hemorroida e veja o
que acontece. Deve ser uma piada interna desses desgraçados da farmácia. Mas
piada interna com o que há de interno em nós é sacanagem.
Começa a parte burocrática. Tenho
que preencher a minha vinda inteira naquela receita imunda. Olho para o lado
pela milésima vez. E advinha quem está ali?
O tal senhorzinho, claro, sempre ele. Aposto que se posicionou junto a
mim por puro sadismo. Queria me torturar aquele velho desgraçado. Preenchi às
pressas meus dados, enquanto aquela figura senil sorria maliciosamente. E antes
mesmo que eu terminasse o que tinha para fazer, o velho tratou de acelerar o
passo – que antes se mostrava lento – para chegar ao caixa primeiro do que eu.
Uma provacaçãozinha barata, típica desse tipo de gente que se diverte com a
desgraça alheia.
Termino de preencher a receita.
Mas antes de me direcionar ao caixa, detenho-me em frente à prateleira de
preservativos, olhando fixamente para aquele senhor inconveniente. Pego várias
camisinhas. Jontex, Prudence, Olla. Todas de tamanho
super-ultra-mega-plus-grande- e-estratosférico. Aproveito para levar também uns
tubinhos de lubrificante. KY. Nas versões tradicional e warming.
Os olhos do velho saltam. De
repente, me transformo diante dele na encarnação da luxúria. Safada? Devassa? Pervertida?
Não me importo. Tudo, menos louca.
Sobre a autora
Boêmia compulsiva e redatora
publicitária nas horas (tão) vagas. Herdou dos progenitores seus piores vícios.
Da mãe, o gosto pelo whisky. Do pai, o Botafogo. Casou-se com um revisor que
teima em corrigir seus muitos erros, não exatamente os de ortografia.
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